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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Resenha: “Um cão uivando para a lua”, de Antônio Torres

Resenha: “Um cão uivando para a lua”, de Antônio Torres

Até antes de ler “Um cão uivando para a lua”, o livro “Essa terra” era o meu preferido. Agora estão empatados, outro “livraço”* de Antônio Torres! O autor escolheu para a epígrafe do livro uma frase genial de William Faulkner: Entre a dor e o nada eu escolho a dor. E você?
Discurso
Antônio Torres e seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 2014.
“Um cão uivando para a lua” é o primeiro romance de Antônio Torres, escrito aos 32 anos (1972), mas com uma linguagem bastante atual e assim continuará sendo daqui a 100 anos, umas das características das boas obras essa atemporalidade. O prólogo é fantástico, o próprio autor nos conta um pouco da sua biografia, de como nasceu essa história e como ela foi publicada, com muitas dificuldades e a ajuda dos amigos. Leia aqui (clique no ícone “resenhas”). No final da obra estão algumas resenhas escritas por gente importante, que você também pode ler na web oficial do escritor.
A ideia do livro apareceu quando o mestre Antônio Torres foi visitar um amigo em recuperação por problemas de dependência de drogas em um manicômio do Rio de Janeiro, no tempo em que os problemas mentais no Brasil eram tratados com eletrochoque. O título surgiu quando ele ouvia Miles Davis sem parar, num quarto de hotel barato em São Paulo, na alameda Barão de Limeira. O protagonista é a pessoa internada, um repórter (como o autor) que conta a história em primeira pessoa, ele tem 28 anos. O texto começa com a visita de T. (de Torres, será?!). E o diálogo entre o doente (o narrador) e “T.” acontece assim: o doente percebendo o incômodo do visitante por estar naquele ambiente que o assustava. O protagonista conversa com “vozes” e sonha muito, sonhos com enredo bem definido, mas não perdeu a consciência das coisas e a percepção sobre as pessoas e sobre quem ele é (um ser confuso e cheio de mágoas da infância). Esse é um romance psicológico, trata do mundo interior de uma pessoa que acaba num manicômio para “descansar” das loucuras do mundo. Imagino que não tenha sido nada fácil o autor ter que “encarnar”, entrar no pensamento/sentimentos de um personagem tão conturbado. Abaixo, Fitzgerald e Godard citados pelo autor e Torres visionário, falando sobre o futuro dos computadores. E aí, mestre, foi mesmo “a glória”? (p. 51)
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O ambiente é o dos anos 70 das estradas empoeiradas, das condições sanitárias precárias, a época do Fusca que quebrava e o próprio dono podia consertar pela simplicidade da sua mecânica. Picada de mosquito se curava com cachaça. A época da construção da Transamazônica, obra gigantesca construída pelos militares e que custou a vida de muitos brasileiros pelas péssimas condições de trabalho no meio da selva, fora a matança dos índios da região, cerca de oito mil, uma verdadeira barbárie. Você que viaja por essa rodovia entre a Paraíba e o Amazonas, saiba que está sobre um vale de suor e de sangue inocente. Alto demais o preço do “progresso”, não?
Começamos a conhecer a história do doente, esse personagem sem nome, que parece ficar incógnito nas suas dores de cidadão comum, como a maioria das pessoas. Alguns personagens têm nome, outros não. O homem empreende uma viagem de Fusca com Floriano, um ex- seminarista e que agora trabalha vendendo gasolina e depois recolhendo dinheiro. Ele anda com uma peixeira no carro, profissão perigosa a dele.
O homem (começo a chamá- lo assim por questões práticas) faz muitas referências ao Junco, na Bahia, terra natal do escritor (hoje, Sátiro Dias). Tem muito do escritor, da sua experiência pessoal, na história.
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Pág. 57
Muitos trechos são autobiográficos, arrisco- me na afirmação. Esse menino de 8 anos chegando da roça…
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O protagonista fica desempregado por ser sincero com o chefe, por não ter “puxado o saco”. Ele vai para São Paulo procurar emprego, fica num hotel barato, sai com uma prostituta, mas é casado com Lila, que é meio doidona e ele a adora. O relacionamento não vai bem, ele teme perdê- la.
O estigma do preconceito, do nordestino sofredor na cidade grande, onde as próprias autoridades não cumprem o papel de defesa dos cidadãos: “Os retirantes andam meio por baixo aqui, o prefeito está expulsando todos eles, a cacetada, na base do ‘mate um retirante por dia, para manter a cidade limpa’ (…)”. (p. 91) O Brasil (parece) já foi muito pior, não?
O autor cita Fitzgerald e o narrador diz saber de memória os textos do americano (p. 92):
Numa noite escura da alma, são sempre três horas da manhã.
O progresso é o desencanto contínuo.
Muito do livro é o fluxo de pensamento do homem quando está sozinho, aquelas coisas que todos pensamos, mas que quase ninguém passa para o papel. Fértil, intenso, dolorido, criativo, emotivo, reflexivo. Assim é o pensamento do narrador. O sono e o sonho também são suas formas de transporte, além das reais viagens pelo Brasil devido à sua profissão de repórter. Não sei se esse livro serviu de terapia a Antônio Torres, parece ter expurgado mágoas da infância (p.155):
Sim, eu fazia uma porção de coisas, desde pequeno, mas a impressão que me deixavam era a de que eu não sabia fazer nada. Então, menino ainda, passei a declamar Castro Alves em praça pública, em dia de festa o povo dizia:
- Menino danado. Foi assim, doutor, que descobri que queria ser jornalista.
Um livro para colocar na sua lista de leituras!

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O poema “Instantes” não é de Borges

Há muitos anos vem sendo reproduzido o poema “Instantes” como do poeta argentino Jorge Luis Borges. Basta olhar alguma antologia do escritor para comprovar que esse poema não existe entre seus escritos. O poema “rola” pela Internet e até em universidades com a autoria errada. Os versos são da americana Nadine Stair. A viúva de Borges,María Kodama, desmentiu a autoria do marido em relação ao poema há anos. Vamos desfazer de uma vez por todas esse equívoco? Possivelmente, o erro originou- se por causa da escritora Elena Poniatowska (francesa com nacionalidade mexicana) que atribuiu a autoria do poema a Borges num livro de sua autoria publicado em 1990. O livro foi retirado com o devido pedido de desculpas:
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Elena Poniatowska, a “culpada”
 Abaixo o polêmico poema com a sua autora correspondente:
Instantes (Nadine Stair)
“Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e profundamente cada minuto de sua vida;
claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver trataria somente
de ter bons momentos.
Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.
Eu era um daqueles que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo”

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Que livraço!

Que livraço!

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quarta-feira, 28 de maio de 2014

O que é bibliomania?

O que é bibliomania?

carjat_rectoGustave Flaubert fotografado por Étienne Carjat (Fareins, 28/03/1828 - Paris, 19/03/1906) famoso por fotografar os artistas da época. Fotografou também Rimbaud, Victor Hugo e outros.
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O verso da foto que faz parte da coleção de Bernard Moland, um apaixonado pela obra de Flaubert, que encontrou fotos e documentos inéditos através do Centro Flauvert da Universidade de Rouen, graças à sobrinha de Flaubert, Caroline Commanville (1846-1931) que guardou todo esse precioso material. 
Bibliomania foi escrito quando Flaubert era muito jovem, tinha apenas 15 anos. O relato foi publicado na revista “Le Colibri” da cidade de Rouen. Essa edição espanhola da Gadir foi bem decepcionante, as datas estão todas erradas: a de nascimento colocaram 1836 e Flaubert nasceu em 1821; o ano de publicação de Bibliomania também, colocaram 1847, mas foi 12 de fevereiro de 1837. Portanto, caros leitores, não acreditem em tudo o que está escrito, em caso de dúvida, comparem com outras versões. Infelizmente, há livros com erros de todos os tipos. Graficamente, o livro é bonito, bem feito, capa dura, todo ilustrado pelo artista Marcos Morán, mas com erros de informação imperdoáveis.
O narrador nos conta a história de Giácomo, de aparência tétrica, suja, pouco saudável, que mora em Barcelona:
Era Giacomo, o livreiro; tinha trinta anos e já passava por velho e usado. Era alto, mas encurvado como um idoso; seus cabelos eram compridos, mas brancos; suas mãos eram fortes e nervosas, mas dessecadas e cobertas de rugas; sua roupa era mísera e esfarrapada; tinha um jeito canhestro e atrapalhado; sua fisionomia era pálida e triste, feia, insignificante até. 
Giácomo é fascinado por livros, mal sabe ler, ele gosta do objeto, do que ele significa, nem tanto do seu conteúdo que mal pode decifrar.  Sua forma doentia de amar os livros e manuscritos é tanta, ao ponto de prejudicar a sua saúde:
Aquela paixão o absorvera por inteiro: mal comia, já não dormia; mas sonhava dias e noites inteiros com a sua idéia fixa: os livros.
A sua obsessão pelos livros raros era desmedida, Giácomo é um livreiro que não quer vender seus livros e não mede esforços para ter os que deseja.
Estava, sim, embriagado do que sentira; estava cansado de seus dias; estava bêbado da existência.
Incrível pensar que esse conto foi escrito por um menino de 15 anos. O talento, esse dom inexplicável e divino, já nasce. O talento aliado ao trabalho, fundamentais para se passar a imaginação ao papel, fizeram de Flaubert um dos melhores escritores de todos os tempos . Não deixe de ler!
Você pode ler o conto completo e grátis aqui. 
Não comprem a edição abaixo:
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Flaubert, Gustave. Bibliomanía. Gadir, Madrid, 2014. 61 páginas
Não confunda bibliomania com bibliófilia, esse é o amor pelos livros especiais, primeiras edições, livros raros, edições corretas, nesse sentido eu sou uma bibliófila e fico muito chateada quando invisto num livro aparentemente bem cuidado, com erros fatais como os citados.

Resenha - Em Busca do Tempo Perdido.

Resenha: “Em busca do tempo perdido- No caminho de Swann”, Marcel Proust

O francês Marcel Proust (Auteuil10/07/1871 - Paris18/09/1922) era filho do médico Adrien Proust, professor e inspetor de saúde. Adrien tentava ensinar os métodos de higiene naquele tempo, que não eram habituais nem conhecidos. Apesar do pai ser médico patologista, epidemiologista e higienista, isso não o ajudou muito, pois vivia doente, saúde frágil, justamente na área em que seu pai escreveu uma tese: o sistema respiratório. Proust morreu por causa de problemas pulmonares. Ironias da vida. Pela posição privilegiada do seu pai, Proust nunca teve problemas econômicos e sempre circulou pela alta sociedade de Paris (tal como Swann, personagem dessa obra). 
Um pouco da história de Proust em imagens, já que grande parte desse livro é autobiográfico e algumas dessas pessoas são personagens:
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Marcel Proust, o escritor de “Em busca do tempo perdido”, obra com mais de três mil páginas.
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O Dr. Adrien Proust, pai de Marcel Proust.
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Proust (sentado) era homossexual assumido, essa foto escandalizou a sua mãe, pois está com seu amigo Robert de Flers (à esquerda, eles estudaram juntos no Liceo Condorcet ) e seu amante Lucien Daudet (à direita), em 1894.
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Proust, sua mãe Jeanne Weil e seu irmão Robert em 1895. Essa família poderia ganhar o título da ‘mais limpinha’ da França, devido aos hábitos de higiene adquiridos pelo pai médico e pouco comuns ainda no século XIX.
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O escritor criança, o mesmo olhar. Essa foto foi usada numa biografia feita do escritor em 1999. Existe uma foto de Proust no seu momento final, que prefiro não publicar aqui, mas quem tiver curiosidade segue o link.
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Adolescente. 
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Marcel Proust num momento descontraído com os amigos, simulando “tocar” a raquete de tênis no Boulevard Bineau em 1892, Jeanne Pouquet no centro, um dos seus amores. Nesse momento, dizem, Proust era esnobe e um escalador social.
O livro “Em busca do tempo perdido- Do lado de Swann” (PT) ou “No caminho de Swann” (BR), trata, principalmente, da memória, da família, do amor e de todos os sentimentos, alguns nada nobres. Proust morreu encerrado no seu quarto escrevendo essa obra, que foi escrita nos seus últimos três anos de vida.
Apaixonei- me por sua escritura quando li Os prazeres e os dias Dias de leitura; agora vou começar a ler essa obra imensa (mais de 3000 páginas) tentando também recuperar o meu tempo perdido. Num total de sete, esse é o primeiro da série: “No caminho de Swann” (original: Du côté de chez Swann)O livro é dividido em três capítulos, “Combray”,depois Um amor de Swann e Nomes de terras: o nome. Esta obra, nas palavras do autor, é “a forma do tempo”, um drama psicológico e de costumes da aristocracia francesa do século XIX. Foi escrita entre 1908- 1922 e publicada entre os anos de 1912 e 1927, sendo que os três últimos,  “A prisioneira”, “A fugitiva- Albertine desaparecida” e “O tempo reencontrado”, publicados depois da morte do escritor.
Abaixo, foto do original de No caminho de Swannque completou no ano passado 100 anos, o manuscrito de 1910 está custodiado pela Biblioteca Nacional da França:
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Para viver, Combray era um pouco triste, assim como as suas ruas, cujas casas construídas com pedras enegrecidas da região, precedidas de degraus exteriores, encimadas por frontões que faziam descer a sombra à frente delas, eram tão escuras que era preciso, mal o dia começava a declinar, erguer as cortinas nas salas (…) (p.55)
Vamos à obra: no primeiro capítuloCombray, são quase 200 páginas, o protagonista da história é o narrador- personagem ( alter- ego de Proust) que começa a contar as suas lembranças dentro do seu quarto, onde permanece muitas horas. O tom é poético, nostálgico:
Encostava ternamente as minhas faces às belas faces do travesseiro, que, cheias e frescas, são como as faces da nossa infância (p.10).
Ele tenta dormir, apaga a luz da vela, mas a sua cabeça fica dando voltas, rememorando o que havia acabado de ler. Identifica- se com o livro, parece ter sido escrito para ele.
A narrativa é construída através das recordações, ele relembra os tempos de Combray na casa de sua tia- avó Bathilde, seus avós, Amédée e o avô (sem nome citado), das tias- avó Cèline e Flora, da tia Léonie, onde recebiam sempre a visita de Charles Swann, nariz curvo, de olhos verdes, debaixo de uma testa alta rodeada de cabelo loiro quase ruivo, penteado como o ator Bressant. (p. 21) que levava uma espécie de vida dupla, andava nas mais altas esferas sociais (pela profissão de seu pai, agente de cambio) era um boêmio e célebre bandido; também pintor, amante de arte e da música (como o próprio Proust). Swann era super bem relacionado, amigo do presidente da república (Grévy) e do príncipe de Gales. O narrador aproveita para criticar a sociedade parisina, nota- se um certo ressentimento/ironia/acidez na escritura de Proust, diz que Paris funciona como a sociedade hindu, por castas, se “fulano” for filho de gente importante, já estava numa casta superior, independente do que fosse e de como agisse. Uma crítica bem atual, cai como uma luva para muitas sociedades contemporâneas.
A ignorância em que estávamos daquela brilhante vida mundana que Swann levava tinha que ver em parte com a reserva e com a discrição do seu caráter, mas também com o fato de os burgueses de então fazerem da sociedade uma ideia um pouco hindu, de a considerarem composta por castas fechadas em que cada um se achava colocado, desde o seu nascimento, no nível que os respectivos pais ocupam, e donde nada, salvo os acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado, o podia tirar ou fazer entrar numa casta superior. (p. 22)
Proust recorda a infância. Uma madalena molhada num chá o transporta a Combray (local que ele realmente frequentava quando criança e que tinha familiares)  traz à tona a relação enfermiça que tinha com a sua mãe. Ele esperava ansiosamente o beijo da mãe antes de dormir. Criança, era impedido de participar das tertúlias noturnas com os adultos, obrigavam- no a subir para dormir. A relação dele com a mãe era estranha, obsessiva. Ele detestava o momento da despedida, ansiava o toque dos seus lábios no seu rosto. A impressão que fica é que o narrador é apaixonado pela mãe no sentido incestuoso. Dormir sem um beijo materno é comparado com a morte para o narrador. Proust entrou no psicológico infantil e mostrou como as crianças sentem e pensam livremente sem as convenções religiosas e morais de parentesco. Ele sente ciúme da mãe e a quer só para ele. Isso pode fazer parte da essência original do ser humano (segundo Freud, é assim). Alguns desenvolvem esse sentimento de forma patológica e para outros não traz nenhuma consequência. Essa parte psicológica do livro, sem dúvida, dá uma tese. Proust e Freud foram contemporâneos, mas não se leram, não se conheceram, dizem por aí, ambos falaram do sonho, da memória, do inconsciente e do complexo de Édipo. É o que sofreu o próprio narrador dessa obra (supostamente, o próprio escritor).
O tempo é importantíssimo, Proust jogou muito bem com esse elemento, parece que a memória quebrou com passado, com o futuro, tudo é uma coisa só, o homem e o menino são os mesmos, os mesmos sentimentos, é difícil dissociar um do outro. A narrativa sobre o menino que espera ansioso a resposta de um bilhete que havia enviado à mãe através da criada Françoise, esse menino, na verdade, já é o homem recordando o passado. Na esfera da memória o tempo se desfaz:
(…) mandou- me dizer pela Françoise estas palavras: ‘Não tem resposta, palavras que depois tantas vezes ouvi da boca de porteiros de palaces ou criados de casas de jogo dirigidas a uma pobre moça qualquer que fica admirada: ‘Como? Ele não disse nada?’. (p.38)
Livro é o lugar do “não erro”, onde as pessoas querem aprender, é imperdoável erros ortográficos ou de digitação. Ainda mais sendo uma editora portuguesa grande e reconhecida como a Relógio D’água. Encontre o erro (p.84):
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Erro de ortografia à parte, a narrativa passa a ser dantesca, a descrição psicológica que o narrador faz de si mesmo na infância sofrendo de amores pela mãe e de remorso, impressiona! A criança vive angustiada com a ausência da mãe, que não é bem pintada na história, parecia ser uma mulher fria, pouco amorosa. O narrador considerava Swann o grande culpado, pois sempre que ele chegava na casa de Combray, a sua mãe não ia dar o seu beijo de boa- noite. Essa época nunca morreu na vida futura do nosso narrador. Bonita a forma em que podemos encontrar com o nosso passado:
Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós e, mal as reconhecemos, quebra- se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornaram a viver conosco.
O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os nossos esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objeto antes de morrermos, ou não o encontrarmos. (p.51)
No caso do narrador- personagem, o passado voltou através do gosto de uma madalena ( bolinho doce parecido com ummuffin) molhado no chá. Essa mistura o reportou à infância em Combray.
Na Páscoa ficava na casa da sua tia doente, Léonie, que mal saía da cama depois que enviuvara, doenças do corpo e da alma, essa pessoa tinha o objetivo de nunca dormir. Ela marcou muito a infância de Proust junto com outro tio, Adolphe, um tio- avô aposentado do exército. O senhor havia se afastado da família, por causa de uma desavença provocada pelo escritor ainda menino. Um dia Proust foi fazer uma visita ao tio e esse estava com uma cocotte, nome dado às prostitutas da Belle Époque. O idoso tio pediu ao menino que não contasse aos seus pais nada sobre a presença da mulher, mas o pequeno Proust fez justamente o contrário apenas duas horas depois: não só contou aos pais, mas disse tudo com os mínimos detalhes. Essa história provocou uma briga feia entre o tio- avô, o avô e o pai do menino. Proust encontrou o tio- avô na rua e ficou com remorso e constrangido. O menino retirou o gesto de saudação que iria fazer com seu chapéu e o tio pensou que foi por ordem dos seus pais. O senhor morreu alguns anos depois sem falar mais com a família. Parece que Proust carregou consigo essa dor e culpa. Ele nunca mais conseguiu entrar no gabinete em que ele passava horas com o tio Adolphe.
O escritor quis deixar um retrato pormenorizado dos costumes, objetos, cartografia, arquitetura de Combray, pessoas da família e da sua infância, as mazelas, as doenças, a amizade, o amor e o desamor. As empregadas da casa, Françoise, muito presente e prestativa; e a ajudante de cozinha grávida, que provocava pena no menino Proust, com seu barrigão fazendo todas as tarefas como sempre. A sua casa constava de todas as virtudes e vícios de Giotto. Swann era admirador do pintor Giotto (1266—1337) precursor do Renascimento italiano e deu de presente reproduções dos vícios e virtudes a Proust. As imagens ficavam na sua sala de estudos.
Marcel sempre estava com um livro na mão, principalmente antes de dormir e debaixo do castanheiro dos jardins de Combray. Sua avó sempre exigia que ele estivesse ao ar livre, mesmo em dias de chuva, o que não o agradava. Veja o interessante estado de transe em que ele entrava enquanto lia, ler era uma “viagem”; esses sentimentos de Proust têm a ver com a mimesis aristotélica, a imitação da realidade, e da catarse, também de Aristóteles, que trata da purificação da alma através dos sentimentos provocados por um drama:
(…) enquanto lia, a minha consciência ia erguendo em simultâneo, e que iam das aspirações mais profundamente ocultas dentro de mim mesmo até à visão toda horizonte que, no extremo do jardim, tinha diante dos meus olhos, o que em primeiro lugar havia em mim de mais íntimo, o punho em constante movimento que governava o resto, era a minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que lia, e o meu desejo de tomar posse delas, fosse qual fosse o livro.(p. 92)
Depois dessa crença central que, durante a minha leitura, executava incessantes movimentos de dentro para fora, para a descoberta da verdade, vinham as emoções que me eram dadas pelas ação em que tomava parte, porque aquelas tardes eram tais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira. Eram os acontecimentos que surgiam no livro que estava a ler; é verdade que as personagem por eles afetadas não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que a alegria ou o infortúnio de uma personagem real nos fazem experimentar só acontecem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou infortúnio; o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que no aparelho das nossas emoções, como a imagem é o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. (…) (p. 92-93)
O trecho é longo, intenso, revelador (um deleite, vou levá- lo comigo para o resto da minha existência!),  ele fala do “achado” do romancista que conseguiu descobrir a “fórmula” para a emoção (ele conta qual é). Mas não vou dizer, tá? Leia o livro! :)
Já na juventude, Proust cita o escritor Bergotte e seu livro “A noite de outubro”, é um personagem fictício. Bergotte aparece em outros livros de “Em busca do tempo perdido”. Não consegui achar nada a respeito, mas vou tentar descobrir se Bergotte pode ser um pseudônimo de alguém que Marcel não quis revelar o nome. Quem terá sido Bergotte?
Também vemos no livro as origens judaicas da família Proust. O seu avô cantava músicas hebreias e o escritor também tinha amigos dessa religião como o Bloch, que seu pai detestava, o achava “idiota” e “imbecil” (p. 100). A avó também não gostava de Bloch, o achava meio louco. O cara era meio doidão mesmo, chegava para almoçar todo cheio de lama, fazia chacotas das pessoas e irritava a família Proust. O único que não se sentia irritado era Marcel, gostava do amigo justamente porque ele se comportava diferente das convenções sociais da moral burguesa conservadora.
Nesse capítulo, Proust ainda jovenzinho não revela a sua homossexualidade, ao contrário, ele apaixona-se por Gilberte, uma ruivinha que morava nos Campos Elísios em Paris (p. 152).
 Marcel sofria a falta crônica de afeto dos pais na sua infância/adolescência, sentia- se muito sozinho:
(…) Se acabava de pensar nos meus pais com ternura e de tomar decisões mais sensatas e mais adequadas a dar- lhes prazer, eles tinham ocupado o mesmo tempo a informar- se de um pecadilho de que eu me tinha esquecido e de que severamente me censuravam no momento em que eu corria para eles para os beijar. (p. 166)
E essa falta de carinho o fazia sonhar assim, uma mistura de carência e desejo:
Por vezes, à exaltação que a solidão me provocava juntava- se outra que eu não sabia separar nitidamente da primeira causada pelo desejo de ver surgir à minha frente uma camponesa que pudesse apertar nos braços. ( p.166)
A partir desse ponto citado acima, Proust começa a falar da sua sensualidade, que eu interpreto como sexualidade, creio que foi algum problema de tradução. O desejo sem limite, queria a camponesa de Méseglise, de Roussainville, a pescadora de Balbec…
(…) e a minha sensualidade se espalha por todos os domínios da minha imaginação,o meu desejo já não tinha limites.(p.166-167)
Proust afirma que foi por causa dessa época que ele desenvolveu, nos anos vindouros, a impressão que então permaneceu obscura, que saiu, muito depois, a ideia que construí sobre o sadismo. (p.169) Ele presenciou (espiando pela janela) duas moças do povoado numa cena lésbica, e uma delas, a senhorita Vinteuil, cuspiu no retrato do pai morto, que ele considerou um ato sádico, de profanação, o prazer na maldade. Na página 174 ele discorre sobre esse ato de sadismo.
A despedida de Combray era dolorosa para o rapaz, que chorava agarrado aos pinheiros. A tia Leònie, que teve uma importância fundamental nesse capítulo de memórias de Combray, morreu num outono, Françoise tomou conta da patroa até o final.
Swann teve um papel de muito pouco destaque nesse primeiro capítulo.
No segundo capítulo voltado para Swann, não tem nada de autobiográfico, é uma história independente. Mulherengo e interesseiro, Swann usa seus contatos para benefício próprio. Esse é o capítulo que nos conta como Swann apaixonou- se e sofreu por Odette. Fascinante.
No primeiro capítulo Swann já havia se casado. Nesse, vamos saber com quem se casou. Swann é pintado como o típico canalha que não se compromete emocionalmente com ninguém, conquistava as mulheres de qualquer profissão, classe social, criadas ou aristocratas, ricas ou pobres, não se importava se eram bonitas ou feias, mas as deixava igualmente sem nenhuma consideração quando cansava delas. Seria mais uma delas, Odette de Crècy, uma cocote(prostituta), que não agradava a Swann fisicamente, para ele é muito feia, apesar de muito elegante e bem vestida. Ela colocou-se nas mãos de Swann, é gentil, afável, humilde, entregada…e acabou conquistando Swann, quando ele pensa numa mulher, é ela que lhe vem à cabeça:
(…) a imagem de Odette de Crécy acabava por absorver todos esses devaneios, se estes deixavam de ser separáveis de recordação dela, então a imperfeição do seu corpo deixava de ter qualquer importância, assim como o fato de ser mais ou menos que outro corpo conforme ao gosto de Swann, pois, tendo- se tornado o corpo daquela que amava, seria dali em diante o único que lhe poderia causar alegrias e tormentos. (p. 213)
Ainda assim, Swann continuava saindo com outras mulheres, apaixonou- se por uma operária jovenzinha e mantinha encontros furtivos com ela. Odette mora na Rua La Peróuse, atrás do Arco do Triunfo, onde Swann sempre a leva na sua carruagem. Na p. 234 há uma descrição da casa de Odette, que mora sozinha e tem um criado. Odette é muito romântica, depois de uma visita de Swann, alguns minutos depois envia- lhe este bilhetinho:
Se se tivesse esquecido também do coração, não deixaria que o recuperasse. (p. 236)
O problema de Swann com Odette é que ele a acha feia, olha só para as suas maçãs do rosto. Swann a compara com a filha de Jetro, Zéfora, representada na Capela Sistina (Vaticano), fresco de Boticelli, “A vida de Moisés”. Tal semelhança fez mudar o seu parecer sobre ela, da semelhança com uma obra- de- arte nasceu o desejo físico, coisa que antes não acontecia. Realmente apaixonou- se por Odette de corpo e alma.
O favor que Swann queria do avô do narrador era que o apresentasse à uma família proeminente, os “Verdurin”, mas com a negativa do senhor, ele recorreu à Odette, pois essa conhecia a senhora que organiza essas tertúlias. Os Verdurin (um casal, ele médico e a esposa) “iniciavam” as pessoas num meio social privilegiado, artístico, musical, algo liberal e variado, como os Cottard, Saniette, o pianista, a tia deste, Forcheville, o pintor, Brichot, Odette e agora Swann, entre outros. Adotarei esse costume da senhora Verdurin:
(…) O meu marido acredita que eu não gosto de fruta só porque como menos que ele. Mas não, sou mais comilona que vocês todos, só que não preciso de a meter na boca, porque gozo com os olhos. (p.222-223)
O jovem pianista tocou a sonata de Vinteuil na casa da senhora Verdurin. O nome do músico é o mesmo da cidade onde nasceu Proust e também é o mesmo nome da senhorita que Proust adolescente espiou pela janela numa cena lésbica no primeiro capítulo. Swann ficou impressionado, ouça:
Swann não parecia simpático ao senhor Verdurin, que o achava muito “presumido” (p. 242); sobre Odette, pensa que ela não é muito inteligente, nem virtuosa, mas que reside justamente nisso o seu encanto.
O amor de Swann por Odette apareceu como se tivesse despertado de um delírio depois de uma febre, como se acabasse de despertar. (p.243)
Com a desculpa de arrumar uma catleia (orquídea) que Odette levava no decote, finalmente, os dois fizeram amor, “fazer catleia” é a forma carinhosa que passaram a chamar o ato sexual. Todo casal apaixonado fica meio ridículo, não é?
Swann está extremamente feliz, Odette passa a ser o centro do seu mundo:
(…) Usualmente as criaturas são- nos tão indiferentes que, quando atribuímos a uma delas determinadas possibilidades de sofrimento e de alegria para nós, faz da nossa vida como que um espaço comovente onde ela estará mais ou menos próxima de nós. Swann não era capaz de se interrrogar sem perturbação sobre o que Odette viria a ser para ele nos anos que iam seguir- se. (p.250)
Interessantíssimo a narração do estado psicológico de Swann em pleno estado de paixão, esse estado de anestesia geral, onde nada exterior importa, onde tudo foge da racionalidade. Leia na página 251.
Pobre louco do italiano Joseph Tagliafico é a música que Odette queria que tocasse no seu enterro. Odette e Swann ouviam também a Valsa das rosas, executada por Odette ao piano. Música que ela gostava, mas para Swann era de mau gosto, ele preferia Vinteuil, mas não tentava corrigí- la, sabia que era pouco inteligente. Tinha efetiva consciência de que ela não era inteligente. (p. 255). Odette era “burrinha”, mas ele gostava dela mesmo assim. O amor é cego, não é? Swann desistiu de ensinar o que era a beleza artística para Odette com medo de desiludi- la e também perder o seu amor. E com isso, ela também o achava Intelectualmente inferior ao que era de esperar. (p. 256). Às vezes nos jogos de amor nem sempre (ou muitas vezes) se acerta. Eles tinham muitas discordâncias e diferenças na forma de ver o mundo e as pessoas. Odette não entendia porquê Swann morava num lugar indigno dele, perto do Cais de Orleães, rodeado de velharias. Swann é arquiteto, estudou por dez anos. Mas ambos amavam até o que odiavam um do outro. Na minha terra isso chama- se “perder a personalidade”:
(…) desde que amava Odette, simpatizar com ela, tentar ter uma só alma dos dois, era- lhe tão agradável que procurava comprazer- se nas coisas de que ela gostava, e sentia um prazer um tanto mais profundo, não apenas em imitar os seus hábitos, como ainda em adotar opiniões (…) (p. 261)
Swann estreita laços com os Verdurin, os admira profundamente,  considera que são “magnânimos”, é o único salão que passa a frequentar. O saber artístico e literário dava um status superior a quem os possuía nesses salões parisinos. Mas tal admiração não é recíproca, o casal detesta Swann.
Forcheville sente atração física por Odette e quer marcar um jantar com ela escondido de Swann; este, faz de tudo para comprazer a amada, dá dinheiro (muito) todos os meses, compra presentes caros, não sai, não viaja, deixou de frequentar a casa dos amigos habituais, sempre à disposição de Odette. Há gente que pensa que ela é uma interesseira, mas Swann não acreditava. O protagonista desconfia da fidelidade da namorada por alguns olhares e atitudes, começa a sentir um ciúme doentio, a persegui- la escondido. Pega Odette na mentira.
Essa é a fase cujo amor vira dor. Com isso também, a queda social, a hipocrisia cai e começam a aparecer as verdades. Swann simplesmente banido depois de seis meses frequentando assiduamente a casa dos Verdurin:
(…) E não se falou mais de Swann em casa dos Verdurin. (p.304)
Esse salão era um empecilho para os encontros com Odette, ele já não podia ir mais lá e era onde ela estava sempre. Ele começou a decepcionar- se com ela, pois não renunciava nada, nenhum prazer para estar com ele. Odette continuava gentil e sedutora quando o encontrava, mas não envolvia- se emocionalmente e seguia com sua vida, justamente como Swann era antes de conhecê- la. Todos os temores, sofrimentos, medos, ciúme desapareciam quando ele estava com Odette. Depois desses encontros Swann voltava a enviar- lhe belas jóias no dia seguinte. Mas a agonia continuou, veja a descrição do que é o “amor” (ou paixão?) de Swann por Odette:
(…) eis o que ele tentava perguntar a si mesmo o que era; porque existe uma semelhança entre o amor e a morte, mais que aquelas outras vagas, que constantemente repetimos, que nos fazem interrogar mais fundo, com receio de que se escape a sua realidade, o mistério da personalidade. E esta doença, que o amor de Swann era, multiplicara tanto, estava tão estreitamente implicado em todos os hábitos de Swann, em todos os seus atos, no seu pensamento, na sua saúde, no seu sono, na sua vida, mesmo no que desejava para depois da morte, era já de tal modo um só com ele, que não seria possível arrancá- lo dele sem o destruir também quase inteiramente: como se diz em cirurgia, o seu amor já não era operável. (p. 324)
Tenho certeza que você conhece alguém (ou você mesmo) que renunciou tudo voluntariamente por um grande amor. Assim era o de Swann.
A história de Swann encontra- se com a do narrador (alter- ego de Proust) quando Swann fala de seu tio- avô Adolphe (aquele que estava com uma prostituta e pediu a Proust que não contasse à família). O tio Adolphe era amigo de Odette (não esqueçam que ela é prostituta), mas tentou agarrá- la à força. E Swann recusou- se a cumprimentar Adolphe quando soube disso. ( p.328)
Swann ao ouvir a sonata de Vinteuil, foi como Proust quando molhou a madalena no chá, as recordações vieram como um vendaval, lembrou do início, de como Odette era apaixonada e agora tñao desatenta. As dúvidas que tinha em deixá- la entrar na sua vida e quando ela lhe pediu para que se vissem mais vezes e ele falava que tinha “medo de sofrer”. Lembrou de tudo o que viveram. Na pág. 362 acontece um dos trechos mais bonitos, onde Swann recupera a si mesmo, chora, sente saudade de quem ele foi um dia ouvindo aquela música. Foi o momento que ele deixou de ser ela e passou a ser ele mesmo de novo. Percebeu que Odette não poderia mais amá- lo como antes. Recebeu uma carta anônima confirmando que Odette era mesmo prostituta, coisa que ele sempre duvidou. Ela transava com homens e mulheres, inclusive Forcheville que era um dos que Swann mais tinha ciúme e a senhora Verdurin, ela própria contou a Swann. Assim funcionava a alta sociedade de Paris em suas duas faces: o que se via e o que se escondia debaixo do tapete. Odette confessou, finalmente, as infidelidades. Swann estava certo.
A história é tão bem costurada, que só no final, com as recordações dos fatos e diálogos acontecidos, tudo faz sentido e é como um susto! Tudo foi uma grande mentira.
E  Swann perguntou- se o porquê de tanto sofrimento por uma pessoa que nem era o seu tipo.
No terceiro capítulo bem curtinho, apenas 48 páginas, volta o narrador a falar dos próprios sentimentos, sobre a verdade e o valor da essência primeira das coisas, de música, natureza, obras-de-arte, das viagens que gostaria de fazer e, principalmente, pelo seu amor à Gilberte.
(…) Só tinha curiosidade, só tinha avidez de conhecer o que julgava mais verdadeiro que eu próprio, o que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou da graça da natureza tal qual se manifesta a si mesma, sem a intervenção dos homens. (p.402)
(…) Para que a tempestade fosse absolutamente verdadeira queria também que a própria costa fosse uma costa natural, e não um dique recentemente criado por um município. De resto, a natureza, por todos os sentimentos que despertava em mim, parecia- me ser o que havia de mais oposto às produções mecânicas do homem. Quanto menos tinha a marca delas, mais espaço oferecia às expansões do meu coração. (p.402)
O narrador cita vários nomes de cidades que gostaria de visitar e comenta sobre a saúde frágil e limitadora, coisa que sempre acompanhou a vida do escritor:
Se a minha saúde se fortalecesse e os meus pais permitissem, se não ir passar um tempo em Balbec, pelo menos tomar uma vez, para conhecer a arquitetura e as paisagens da Normandia ou da Bretanha, aquele trem da uma e cinte e dois em que embarcara tantas vezes em imaginação (…) (p. 406-407)
Por ordens médicas, Proust ficou proibido de viajar por um ano na juventude, de ir ao teatro, de qualquer coisa que o agitasse. Teve que cancelar uma viagem programada para Veneza e Florença, além dos encontros sociais com os amigos, principalmente a amiga Gilberte Swann, com quem sempre ia brincar nos Campos Elísios e ver o Sena congelado no inverno. Ele apaixona- se pela moça, só pensa em Gilberte, só quer estar com ela, mas não é correspondido. Ambos são crianças ainda, Françoise ainda o busca na escola.
Esse capítulo é cheio de metáforas, analogias e alegorias:
Há dias montanhosos e difíceis que levamos um tempo infinito a transpor e dias em declive que se deixam descer a cantar a toda a velocidade. (p. 409)
Sobre o amor que nasce espontâneo e o amor “provocado” ou “forçado”. Sim, existe qualidades diferentes de amor: aquele que nasce sem esforço, existe sem razão e outro que precisa ser alimentado pela racionalidade ou pela conveniência:
(…) e como todos temos necessidade de encontrar razões para a nossa paixão, mesmo o sermos felizes por reconhecer no ser amado qualidades que a literatura ou a conversa nos ensinaram serem das que são dignas ou transformá- las em razões novas para o nosso amor, ainda que essas qualidades sejam as mais opostas às que esse amor procuraria quando era espontâneo. (p. 428)
Proust revelou só no finalzinho do livro (p. 439) quem é a mãe de Gilberte e com quem Swann casou- se. Não vou contar!
(…) Mas agora, mesmo não me levando a nada, esses momentos pareciam- me ter tido em si mesmos grande encanto. Queria reencontrá- los tais como os recordava. (…) (p. 445)
O narrador queixa- se da deselegância dos carros e mulheres, prefere as lembranças da sua infância.
O fim do capítulo é belo e melancólico. Proust fala do fim das coisas, da memória que tenta reconstruir o que já não existe, da fugacidade da vida e do tempo.
Mais alguns trechos que destaquei do livro:
(…) O Hábito! Acomodador hábil mas muito lento, e que começa por deixar que o nosso espírito sofra durante semanas numa instalação provisória; mas que, apesar de tudo, o nosso espírito fica feliz por encontrar, porque, se não fosse o hábito, e reduzido exclusivamente aos seus próprios meios, seria impotente para nos oferecer uma casa habitável. (p. 14)
(…) mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de quem cada um apenas tenha de tomar conhecimento, coo de um caderno de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros. Mesmo o ato tão simples a que chamamos ‘ver uma pessoa conhecida’ é em parte um ato intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos sobre ele e, na figura total que imaginamos, essas noções possuem um importante papel. (p. 25)
O que eu censuro nos jornais é obrigarem- nos todos os dias a dar atenção a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. Já que rasgamos febrilmente todas as manhãs a cinta do jornal, então devemos mudar as coisas e pôr no jornal, sei lá…os…os Pensamentos de Pascal (…)  ( Swann, p. 32)
Proust cita Eclesiastes pela boca de sua tia: “As pessoas aduladoras sabem bem fazer- se rogadas e arrecadar a massa; mas, paciência, Deus nosso Senhor um belo dia castiga- as”; (…) A felicidade dos maus como torrente corre.(p. 117)
(…) Mas já na idade de poucas ilusões de que Swann se aproximava (…). Nessa época da vida já o amor nos atingiu várias vezes; ele já não evolui sozinho em conformidade com as suas próprias leis desconhecidas e fatais, diante do nosso coração pasmado e passivo. Vamos em seu auxílio, falseamo- lo pela memória, pela sugestão. Ao reconhecermos um dos seus sintomas, recordamo- nos, fazemos renascer os outros. (p. 210)
(…) É verdadeiramente incrível pensar que um ser humano pode não compreender que, ao permitir- se um sorriso a respeito de um semelhante que lhe estendeu lealmente a mão, se degrada até uma abjeção da qual nem a melhor das boas vontades jamais o poderá levantar. (p. 302)
Curiosidades:
  • o primeiro a traduzir essa obra no Brasil foi Mário Quintana em 1948.
  • Marcel Proust é considerado o primeiro escritor clássico do seu tempo.
  • Proust cita bastante George Sand, que é pseudônimo de uma baronesa feminista francesa, Aurore Dupin, que teve uma vida fascinante e lutou pela emancipação feminina no século IXX.
  • O povoado de Combray tem menos de 140 habitantes e acabou virando lugar turístico- literário por causa do primeiro capítulo dessa obra. As pessoas vão a Combray comer madalenas e visitar o sítio do tio de Proust, Jules Amiot, que no livro é propriedade de Swann.
  • A fotografia de Proust morto dois dias depois do seu falecimento foi feita pelo fotógrafo americano Man Ray(Philadelphia, 1890- Paris, 1976), por insistência do seu amigo Jean Cocteau, escritor francês. A foto é considerada objeto de Arte e está exposta no Museu Metropolitano de Arte em Nova York
  • A sobrinha- neta de Proust, Patricia Mante- Proust lançou um livro- álbum sobre o tio ilustre com documentos e fotos familiares nunca vistos antes. Eu consegui esse tesouro e, em breve, falei sobre ele aqui. Chama- se “Proust- a memória recobrada”.
  • Um dos restaurantes preferidos de Swann (p. 311) é o Lapérouse, que realmente existe em Paris. Odette mora numa rua com o mesmo nome do restaurante. O Lapérouse transformou- se em ponto de encontro literário e teve ilustre frequentadores como Guy de Maupassant, Emile Zola, Alexandre Dumas e Victor Hugo, um dos salões leva o nome do escritor desse último .
  • Proust usou seus amigos como inspiração para criar Charles Swann, um deles chamado Charles Hass (Paris- 1833- 1902), foto:
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Um livro essencial na biblioteca de qualquer bom leitor. Depois dessa leitura decidi aprender francês “de verdade”, uma pena não ler o original. As traduções nunca mostram o que os livros são na realidade, desconfie sempre delas e procure um tradutor de renome para minimizar o “estrago” da tradução. A edição portuguesa com tradução de Pedro Tamen:
9789727087303Proust, Marcel. Em busca do tempo perdido- Do lado de Swan. Relógio D’água, Lisboa, 2003. Tradução: Pedro Tamen. 448 páginas
Esse livro ajudou- me a entender um pouco mais sobre a vida. O post enorme, inevitavelmente imenso, vai ser mexido e remexido algumas vezes ainda. Não estranhe se encontrar coisas diferentes ao voltar outras vezes. :)
* “Tudo o resto” usado em Portugal; para brasileiros, “todo o resto” nos soa melhor.
* *As citas foram corrigidas de acordo com o último acordo ortográfico, e quando facultativa, a versão escolhida foi a brasileira.

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